quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O MEU VESTIDO AZUL

Aquela tarde de Agosto estava tórrida, mesmo com o sol já em declínio. Procurei então a sombra duma velha rua depois de descer pelas ruas estreitas da velha cidade, tão estreitas que as casas quase se tocam, e os moradores quase se abraçam.
Numa pequena loja de bairro, no largo fronteiro à igreja, algo me chamou a atenção.
Abeirei-me da montra e quedei a olhar um vestidinho de criança, em tons de branco, azul e verde, numa mistura de nuvens, céu e mar.
Veio-me então à memória o vestidinho airoso e simples da minha lua-de-mel, há quantos anos, Deus meu!
Comprara-o em Coimbra, numa daquelas vielas típicas tão procuradas pelos turistas
pela sua antiguidade e tradição.
Muito degradadas, com a calçada desnivelada e gasta, estes padrões coimbrões tocam a nossa sensibilidade, não só por recuarmos no tempo, mas ainda pela beleza das suas trapeiras, onde junto às janelas desventradas as flores germinam em vasinhos de barro, ou em qualquer outro recipiente improvisado, enquanto a roupa branquinha esvoaça quando tocada pela brisa.
Nos anos cinquenta a vida era dura para a classe operária de que eu fazia parte. Por esse motivo e a conselho duma colega de trabalho, eu busquei aquele comércio ilegal, naquelas águas -furtadas onde tudo se vendia a preços mais acessíveis às nossas
magras bolsas.
Subi a medo a escada escura, onde os degraus carcomidos pelo caruncho, mostravam na curvatura central o desgaste de muitos anos.
Lá no alto, no pequeno sótão daquele quarto andar escuro e bafiento, havia um pequeno mundo comercial.
Em prateleiras improvisadas havia de tudo um pouco caixas de botões, elásticos, rendas e «lingerie feminina» um tanto ousada para a época, onde os nossos olhos se quedavam encantados. A um canto, montes de tecidos amontoados, meio desdobrados,
deixando à vista do cliente a mercadoria.
Aquele pedaço de tecido de popeline estendido no sobrado escuro era um encantamento, lindo nos seus tons de mar de céu, de espuma.
Não regateei. Como era hábito na época.
Com o embrulho bem aconchegado ao peito, não fosse eu de despistada que era perdê-lo, viajei no tempo até casa, num encantamento sem par.
Com muito amor eu mesma o confeccionei. De corpo muito ajustado donde sobressaíam os meus pequeninos seios e um decote em forma de barco, muito em voga nos figurinos, deixava a descoberto uns ombros magros e pálidos e alongava o meu pescoço esguio.
Com a saia rodada a envolver a minha cintura fina, dentro dele eu mais parecia uma
bailarina saída duma caixa de música que vira há dias numa montra de bazar, que rodava, rodava, ao som duma música linda.
Tentei dentro da minha timidez ser uma noiva feliz ao passear-me pelos jardins das
Caldas e pelas velhas e típicas ruas do Porto onde fui em lua-de-mel.
De quando em quando a minha figurinha airosa dentro dum vestido de popelina barata reflectia-se nos vidros das montras e eu sentia-me como uma estrela a passear-se na terra.
Um par de namorados passa agora junto a mim, e olham embevecidos um vestido de noiva, e baixinho fazem projectos à mistura com beijos...
Depois partem como tinham chegado, muito unidos segredando, e eu vou com eles
pela rua agora mais fresca onde as sombras do entardecer já se reflectem nas pedras da calçada.
Já em casa refugio-me na minha sala de trabalho, meu quarto e meu mundo de mulher mal amada, a quem o destino tudo roubou, o amor, o pouco dinheiro, a saúde e a alegria de viver.
Estendo-me sobre o velho sofá onde há anos durmo numa solidão confrangedora, sem um afago ou palavras de carinho que possam minorar a dor deste câncer que quer vencer-me.
Tento reter as lágrimas que teimosamente caiem de meus cansados olhos e deslizam lentamente pelo meu rosto envelhecido.
Sobre a estante, a velha grafonola é uma tentação para minha alma triste. Agarro à toa um velho disco já arranhado e gasto.
Por ironia do destino era o muito conhecido «TANGO AZUL».
Olhando o anoitecer, eu tento recordar a primeira vez que o ouvi, na praia, entre carícias e beijos, à mistura com o marulhar do mar e o bater das ondas nas rochas escuras e carcomidas.
As lágrimas que a custo quero reter, são agora um caudal a deslizar pelas minhas faces cansadas e envelhecidas.
A noite inunda agora este meu pequeno mundo onde há em tudo um pouco de minha vida.
Fotografias aqui e além, telas que pintei nos meus tempos áureos e os poemas de que mais gosto impressos em placas de porcelana pintadas por mim.
Rodeio-me do belo, mas a tristeza vagueia entre estes pequenos nadas, a matéria da vida.
Quero quebrar este encantamento, lavar com todo este meu pranto a vivência dum passado sem amor.
O meu vestido azul...o meu vestido azul...Sonho lindo duma noite quente de verão!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

INTERROGAÇÃO

O que vou fazer da vida
Já curta mas bem sofrida
Que me espera até ao fim,
Se o viver que me rodeia
É um castelo de areia
Junto ao mar que vive em mim?

O que fazer da saudade
Que pela noite me invade
Em imagens desfocadas,
De mentiras e traição
Que me roubam a emoção
Do alvor das madrugadas?

O que me resta colher
Nesta meta a percorrer
Em que sigo de mansinho,
Se o pavio da candeia
Apagou-se e não se ateia
E não encontro o caminho?

Manuela Figueiredo Sopas

11/7/2003

sábado, 18 de outubro de 2008

A LEMBRANÇA DAS DATAS

Rompeu a manhã, a névoa desceu
Abraça a cidade agora desperta,
Um melro esvoaça e a cantar alerta
Que um novo dia para nós nasceu.

Balança ao sabor da aragem que passa
A folhagem verde das sebes fronteiras,
Abrem-se janelas, regam-se floreiras
Enquanto o sol espreita p'la cortina baça.

Neste dia triste que a brisa trespassa
Não quero lembrar a data que passa
Que a brisa do tempo jamais ofuscou,

E sobre a paleta caída na mesa
Diluo na tinta a minha tristeza
Para esquecer no belo a triste que sou.

Manuela Figueiredo Sopas

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

PASSEI A VIDA A SONHAR


Eu quis sonhar como outrora
Olhando a árvore da rua
Fronteira à minha sacada,
Enquanto a aragem de Outono
Fazia rodopiar
Algumas folhas caídas
Que teimavam em ficar
Espalhadas na calçada.

E comparei-as comigo
Qual lapa agarrada à vida!
Também sou folha caída
Que o vento arrasta sem dó
Tão sofrida, tão carente
Descrente e desiludida
A sentir-se sempre só
No meio de tanta gente...

Venham sonhos com o vento
Sonhos lindos de menina
Muitas palavras de amor,
Muitos prazeres de momento,
Muitos risos de criança
Muitas mensagens d'esperança
E fé num mundo melhor

Será que me ouves, Senhor?

Manuela Figueiredo Sopas

Set./2000

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A Ultíma Cartada

A notícia correra célere naquela pequena cidade provinciana. O velho africano era pessoa considerada e de fino trato, amigo do seu amigo.
Por tal motivo, naquela rua e por toda a zona ribeirinha da cidade, o triste acontecimento fora notícia, e todas as pessoas comentavam o sucedido.
Só o velho António ignorava a morte do velho amigo. No dia anterior deitara-se cedo. Os seus noventa e dois anos já não lhe permitiam grandes noitadas, e este frio intenso do mês de Dezembro enregelava-lhe as pernas trôpegas que já mal o deixavam andar.
Já a manhã ia alta quando recebera a triste nova, atirada de chofre pela vizinha alcoviteira das traseiras que, irrompendo casa dentro, lhe gritara bem alto e sem rodeios, indiferente ao choque que lhe iria causar:
- Morreu o seu parceiro, senhor António!
Acabaram-se as jogatinas! Coitado, era tão bom homem...Todos seguimos uns atrás dos outros...É assim a vida. Já pagou e nós ainda devemos...
E continuou porta fora com a lengalenga normal nestas ocasiões.
O pobre ancião já nem a ouvira.
Ficara impávido, o olhar vago e fixo a tentar compreender o que acontecera. Sim, porque a sua mente senil e cansada já não conseguia compreender muito bem, distinguir entre o sonho e a realidade.
Quanto tempo assim esteve não o saberia dizer. Cambaleante, como um autómato, procurou a velha bengala a que se apoiava, e indiferente às réplicas da sua velhota, ele aí vai rua abaixo.
A aragem era cortante. Esta quadra de Natal era pródiga em frio e chuva, que inclemente lhe corria pelas faces enrugadas, vincadas pelos muitos anos e pelas asperezas da vida nem sempre ridente.
Arquejante chegou ao seu destino e um a um foi subindo os degraus que o levavam ao último andar.
Quando exausto parou no patamar, os seus olhos cansados ainda puderam vislumbrar uma mesa coberta por um pano escuro, e sobre ela muitos cartões.
Um burburinho desusado percorria toda a casa, ouviam-se sons abafados de choro.
Indiferente caminhou...caminhou...
Notou que alguns olhares se fixavam em si compadecidos, algumas mãos se lhe estendiam, que os familiares o abraçavam.
Mas continuou, procurando sempre, olhar ansioso.
Lá estava a velha mesa com cadeiras em volta, o aparador, e sobre este o baralho das cartas...Gente, muita gente estranha a olhá-lo...a olhá-lo...
Mais além, ao fundo, um esquife, velas acesas, e flores, muitas flores, e gente, sempre gente
Apercebeu-se de que alguém lhe cedia uma cadeira. Trémulo e hesitante sentou-se
Uma luz parece ter então rompido as trevas do seu pensamento e começa a
ver claro, e a aperceber-se da realidade.
O seu amigo jazia ali imóvel e marmóreo. Hoje chegara atrasado, e «ELA» a traidora, adiantara-se e jogara com ele a última cartada, da qual como sempre saíra vencedora.
Acabaram-se as tardes bem passadas, o desfilar de recordações
Quem ligaria agora a um pobre velho já com os pés virados para a cova?
Duas lágrimas furtivas rolaram-lhe pelas faces cavadas, outras tantas se lhe seguiram.
Durante muito tempo ele ali esteve curvado sobre o amigo, ora perdido em seus pensamentos, ora balbuciando orações.
Depois, vacilante e mais curvado que nunca, desceu lentamente os degraus, e sempre arrastando os pés, indiferente às baladas de Natal e às luzes feéricas da rua,
perdeu-se nas sombras da noite

Manuela Figueiredo Sopas

1971

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

BARCO SEM NORTE

Podes todas amar que não me importo
Fico feliz se encontrares teu rumo
Eu ficarei no cais envolta em fumo
Num navio fantasma sem ter norte.

Beija-as a todas e ama-as de verdade
Já que o amor por mim nunca existiu
Estrela que não brilhou, nem refulgiu
Na tua ânsia de eterna liberdade.

Se tantos me quiseram porquê tu,
Viste meu corpo e alma sempre a nu
Na pureza da flor sem dó colhida

Porquê caminho assim, barco sem norte
Abandonada às marés da sorte
Sem encontrar a «terra prometida»

Manuela Figueiredo Sopas

2002

sábado, 11 de outubro de 2008

OS MEUS PASSOS

No meu passo arrastado quando saio
Palmilho as ruas como poeta errante,
Olhando o sol poente e o levante
De côr cinzenta neste fim de Maio.

Andorinhas no céu a pipilar
Ensaiam pelos ares novo bailado,
E sigo-as de olhar maravilhado
Porque não tenho asas p'ra voar

Dia após dia são estes os meus passos
Sozinha, sem amigos e sem laços
Que me prendam à vida em que vegeto,

E sorrio, sorrio caminhando
Para o fim que se vai aproximando
Duma vida vazia e sem objecto.

Manuela Figueiredo Sopas
Maio/2008

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Passatempo Eu Fui Um Dia Princesa

Para lançar os meus Blogs novos decidi em cada um dos meus 4 blogs deixar um passatempo.
Para este o prémio é o novo livro da Sveva Casati Modignani, "Feminino Singular"
Para ser o vencedor deste livro, basta enviar para o mail passatempos212@gmail.com a resposta às seguintes perguntas:

1- Qual o seu livro preferido da Sveva Casati Modignani? Porquê?

2- Que farias se fosses Princesa/Príncipe por um dia?

A resposta mais original ganha o Livro.
Limite : 31 de Outubro

ENTRE A BRUMA

Era de chumbo o céu no horizonte
E triste o casario ribeirinho,
Do rio a deslizar por entre a ponte
Nem um murmúrio ouvi no meu caminho.

Nem pardais no relvado debicando
Nem gaivotas atentas na marina,
Nem passos saltitantes de menina
E nos bancos... só velhos recordando...

Caminhei... caminhei... olhando em frente
Um cenário criado pela mente,
Pedaços duma vida a terminar,

Tento ligar as peças uma a uma
Mas perdi-as no céu envolto em bruma
Como puzzle difícil de acabar.

Manuela Figueiredo Sopas

10/5/2008

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Fitas pintadas à mão 2






Continuação do post anterior, tentem lá advinhar qual é a universidade onde foi queimada a fita ??

Fitas pintadas à mão

Desta vez para variar um bocado, vou vos mostrar a arte das belas mão da minha avó, isto são fitas daquelas que os estudante usam nas queimas das fitas.
Foram feitas para a Alexandra Silva, minha namorada, para ela não ter de comprar as fitas a um preço exorbitante que as lojas pedem por fitas pintadas. Elas foram umas quantas, aqui estão só algumas, no post a seguir irem por mais algumas. Elas foram pintadas num curto espaço de tempo logo não tão perfeitas e também já passaram por uma queima.
Elas foram todas pintadas à mão, e até os poemas foram escritos a pincel e de preposito para Ela.
Espero que gostem...








terça-feira, 30 de setembro de 2008

OUTONO

Chegou o Outono e a tristeza
Desce às folhas das calçadas,
Vermelhas, amarelecidas
Por muito vento batidas
E pela urbe pisadas

Deixaram a árvore mãe
Nua, fria, decepada,
Ficou de braços erguidos
Para os céus já escurecidos
P'la tempestade chegada.

Aqui da minha janela
Não me canso de as fitar,
Num bailado muito seu
Que Deus há muito lhes deu
P´ra seu ciclo terminar.

Das folhas amarelecidas
Olho triste a despedida,
E penso de mim p'ra mim
Como será o meu fim
No rodopio da vida?

Manuela Figueiredo Sopas

9/11/2007

sábado, 27 de setembro de 2008

MENDICIDADE

Quanta falta de sorrisos
Na gente que por mim passa,
Quase sempre mal trajada,
De aparência mal cuidada
De passo incerto e sem graça.

Vão quase sempre apressados
Indiferentes ao mundo,
Parecem preocupados,
E têm rostos cansados
E o olhar triste e profundo.

Aqui e além a miséria
A estender a magra mão,
Emigrantes desesperados,
Velhos, crianças, drogados
Mendigam para ter pão.

Oh que saudades eu sinto
Dos tempos que já lá vão,
Da minha risonha infância
Em que não via criança
Na rua pedindo pão.

Manuela Figueiredo Sopas

21/3/2008

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

LÁ P'RA RIBA, PAI

Do alto da colina verdejante toda a cidade se via, de casario branco alvejando ao longe e beijada pelo Mondego murmurejante que a seus pés corria.
Foi aí, numa pequena casa de branco caiada com uma pomba de barro a esvoaçar sobre o telhado que eu nasci, em noite quente de Agosto.
Era longo e escalavrado o percurso que nos levava à estrada mais próxima que nos levaria à cidade ribeirinha.
O mar distava cerca de dois quilómetros da citada colina, e para usufruirmos dos banhos estivais tão recomendados pelos médicos, o pai, pela madrugada, antes de iniciar o trabalho na oficina de carpintaria, levava-nos até à praia.
De bicicleta à mão, que nós, eu e minha irmã mais velha seguíamos a par, lá descíamos a tortuosa azinhaga de pedras enormes e desniveladas, para depois em terra firme subirmos para o único meio de transporte transitável, a bicicleta, que nos levaria até ao longo oásis branco, onde o mar ao longe bramia sem cessar.
Os solavancos do já velho e desconjuntado velocípede magoava-nos o traseiro, mas gostávamos daquele passeio matinal embora pelos alvores da manhã pouca circulação se visse, a não ser carroças ainda puxadas por jericos carregadas de produtos hortícolas para abastecer o mercado
O pai chegava cansado à esplanada sobranceira ao mar. Tinha pedalado o mais depressa que suas pernas conseguiram com sua preciosa carga não fosse chegar fora de horas ao seu trabalho diário.
Quando o cheiro a maresia próxima penetrava nas nossas narinas, o medo instalava-se em nossos frágeis corpitos e a barriga doía.
Depois, já na praia, de camisita que a aragem matinal ajustava ao corpo, lá seguíamos tiritantes pela mão do «Euclides», o banheiro, enfrentar aquele gigante de barbas brancas e eriçadas e mergulhar naquele abismo gelado!
O banheiro, de faixa de lã preta ajustada fortemente à cintura, chapéu de oleado amarelo e calças grosseiras de lã preta, prendia-nos a pequena e trémula mão na referida faixa, e lá seguíamos trementes de medo, para em cada onda, empurradas pela mão calosa e gelada do «Euclides», mergulharmos no que para nós parecia um abismo sem fim, e depressa meio sufocadas, esperar por nova onda
Quando o pai de toalha na mão nos esperava no areal sem fim, eu apavorada gritava:
-L´p'ra riba, pai,lá p'ra riba!
Depois, já livres do pesadelo que dia a dia se repetia, seguíamos para a nossa colina lá no alto, o porto seguro onde o «gigante» não chegava, e depressa esquecíamos nos nossos infantis brincadeiras o que dia a dia nos esperava.
Muito tempo já passou. Os costumes são outros, e as crianças de hoje aguardam ansiosas o tempo de praia para brincarem felizes junto do «Gigante», sem que um «Euclides» as force a enfrentá-lo.
Embranqueceram-me os cabelos e as pernas já não são tão ligeiras como outrora.
O areal imenso, o oásis branco como lhe chamei, é hoje muito maior. O. «Gigante», como lhe chamava continua igual, ora temível, ora manso a beijar a eterna noiva, a dourada areia.
E eu, que tanto o temi, amo-o agora no seu batalhar constante, falo com ele, e nele sepulto as muitas mágoas duma vida nem sempre fácil, mais ferinas que todos os mergulhos que temerosa enfrentei na minha nem sempre fácil mas doce meninice.
Mas quando o vejo irado e as ondas se despedaçam contra a penedia junto ao farol ainda pareço ouvir no seu eterno marulhar a minha vozita de criança clamando:
- Lá p'ra riba, pai, lá p'ra riba!


Manuela Figueiredo Sopas

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

OUÇAM FILHAS:

Talvez não fosse a mãe que desejaram
Nem vos dei tudo aquilo que queria,
A minha bolsa sempre foi vazia
Para vos dar aquilo que ambicionaram.

Lutei sozinha para o melhor vos dar,
Sem tréguas no trilhar do dia-a-dia,
No meu viver sem paz, só de agonia
Sem meios p'ra formar um novo lar.

Agora mais que nunca estou cansada,
Sem forças para viver esta agonia
Duma paz podre p'ra que fui fadada,

E neste fim de estrada em que vegeto,
Já nada sou, apenas objecto,
E serva de quem nunca me deu nada.

21/2/2008
Manuela Figueiredo Sopas

terça-feira, 23 de setembro de 2008

RETRATO

Vi-a passar além, olhos magoados
Bem diferente da moça de outras eras,
Iluminada por sonhos e quimeras
Cabelos ao vento pela neve já tocados.

Fora duma beleza cativante
Flor silvestre, estranha, cristalina,
Um rosto alegre e puro de menina
Em busca dc amor, sempre distante.

Viveu a vida em sonhos embalada,
Ferida por «Cupido», maltratada,
Flor caída em espesso lodaçal,

E assim caminha só, cabelos ao vento
Como haste decepada em movimento
Até que a foice decida o seu final.

Manuela Figueiredo Sopas

20/2/2008

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O último Vai D'Arrinca

A noite fora agitada. Vira-se rio acima, remando... remando...remando...numa agitação frenética. As imagens sobrepunham-se e o barco, o «Shell de 4» parecia perder-se em denso nevoeiro, enquanto ele, na sua voz forte de baixo, gritava:
- Força, rapazes, a meta aproxima-se! Mais um pequeno esforço e seremos campeões! Mais três picadas, vai d'arrinca, zás, trás!
Acordara muito cedo. Disputava-se hoje um campeonato de remo, e o seu querido Ginásio lá estaria Mondego acima a tentar a vitória, e ele, o antigo timoneiro e ginasista de gema não faltaria à largada, para de pé aplaudir e gritar o seu já conhecido estribilho:
A rua estava serena ladeada de árvores verdejantes, a gozarem agora o esplendor da primavera.
Pequenos rebentos surgiam agora nos esqueléticos ramos, cansados dum longa invernia.
Dobrou a esquina, olhou as horas no relógio da estação, não fosse chegar atrasado.
Em passo um tanto arrastado, pois os seus oitenta e poucos já não lhe permitiam a pedalada de outrora, encontrou-se na velha avenida, na margem do rio, fronteira à sua antiga morada
Quantas recordações, Deus meu...Quão diferente estava agora! O rio afastara-se devido à construção dum cais comercial, construído há já alguns anos.
Já não há bancos na margem, nem se vêem daqui as regatas, nem as lendárias serenatas d'outros tempos, que atraíam milhares de forasteiros, pelas festas de S. João,
o padroeiro da cidade.
Os velhos barcos alinhados à beira-rio desapareceram, e os pares de namorados já não buscam a escuridão da noite para darem asas aos seus anseios amorosos.
Agora beijam-se e abraçam-se em qualquer lugar e a qualquer hora, alheios aos olhares escandalizados e curiosos dos mais retrógrados da gente que passa.
Uma rede alta ofusca por completo a outra margem o cais comercial e os velhos estaleiros. Mas as buganvílias e sardinheiras enleadas trepam enleadas e embriagam-nos com o seu perfume.
Só não conseguiram tapar os montes de madeira que se acumulam dia a dia para a pasta de papel das duas grandes fábricas circunvizinhas do lado de lá da ponte nova que nada têm de atraente
As árvores velhas foram arrancadas à terra-mãe e outras, esguias e menos frondosas, despontam aqui e além.
A sua velha casa, onde vivera muitos anos, lá está, escura e degradada, perdida no tempo.
Outras gentes agora lá habitam, alheios aos fantasmas saudosos que decerto há noite se passeiam pelos longos corredores.
Guindastes gigantescos parecem figuras dantescas a erguer os braços para o céu, como que a pedir protecção contra a destruição do «progresso».
Quanta beleza não tinha o raiar do dia nos barcos a deslizar e as gaivotas atentas no assoreamento do rio, ou mais acima ancoradas nos barcos já apodrecidos dum velho estaleiro, ainda funcional.
Com a chegada dos bacalhoeiros este cais regurgitava de familiares e amigos, saudosos dos lobos-do-mar, ausentes há meses na Terra-Nova.
Era um não mais acabar de beijos e abraços, porque a gente do mar é muito afectuosa, e a distância, o tempo e os perigos que enfrentaram avivam a sua saudade.
A velha Naval também desapareceu, pensou o velho atleta. Agora tem um novo cais à entrada da barra
As escadinhas de madeira por onde carregava os barcos aos ombros depois dos treinos e das corridas foram-se, bem como as pedra um pouco mais abaixo.
Fora junto destas que aprendera a nadar. O velho Neves era mestre exímio, e não havia chumbos, só cachaçadas e pirolitos!
Sente-se agora cansado, pois a idade não perdoa e as suas pernas já não têm a agilidade de outrora.
Atravessa a nova praça e consulta o relógio. Já não verá a largada, mas não importa a chegada é muito mais impressionante
Gritará como outrora o seu forte «Vai d'arrinca» e todos olharão e a sua vaidade crescerá dentro do peito, porque este amor ao Ginásio vai para além túmulo, ele sabe-o bem.
Havia pouca gente a aguardar a chegada, já não há carolas como outrora, murmurou baixinho. Meia dúzia de atletas e outros saudosos como ele completavam a assistência na Praça da Europa.
Sentou-se então nas escadas que levam ao rio, para assim desfrutar a tão ansiada chegada.
Não vê os netos, pouco amantes de desportos, mas sabe que virão, pois preocupam-se muito consigo, receosos de que algo lhe aconteça. Ele é para eles o pai querido que nunca tiveram.
Sente um torpor estranho a invadi-lo, e já nem distingue se é sonho ou realidade este barco que navega rio acima, envolto em denso nevoeiro.
Não consegue ver a beleza das margens que nas manhãs claras de outrora, até ao anoitecer o encantavam quando pausadamente navegava rio acima a timonar o seu «shell de 4», quando treinava. Depois um túnel enorme surgiu ante seus pasmados olhos.
Ao fundo uma luz intensa e maravilhosa como nunca vira, como que a querer mostrar-lhe o caminho, arrastava-o não sabia para onde, numa força centrífuga que o assustava.
Entrou assim num lugar idílico de prados verdejantes e lagos translúcidos. Nas
margens muita gente parecia aguardá-lo, amigos que já tinham partido há muito e que agora corriam para ele de braços abertos: o Zé Armando, o nauta, o velho Reis, o Quim, o Galeota, o Jordão...e tantos outros amigos da sua juventude que há muito haviam partido.
Sentia-se invadido por uma música melodiosa, diferente, celestial, a que não conseguia fugir.
Mais além, junto a um campo de flores que pareciam brotar espontâneas por todo o vale, uma figurinha gaiata, lencito a esvoaçar a segurar-lhe os cabelos negros, apática e distante...
Não corria para ele. Continuava só, como sempre andara. Estendeu-lhe os braços e chamou, chamou...
Havia tanto a dizer-lhe que nunca lhe dissera!....Mas a sua perdeu-se no vácuo e só ele a ouviu.
A figurinha diáfana foi-se afastando pouco a pouco, e juntou-se a outro grupo, sempre sorrindo, naquele sorrir enigmático e triste que sempre lhe conhecera. Era tarde demais para recuperar o perdido. Só lhe restava regressar só, embora lhe custasse a abandonar este paraíso e os amigos de sempre.
Não encontrou o barco e o túnel também desaparecera.
Só os amigos continuavam a rodeá-lo e outros mais se juntaram.
Sentiu então uma enorme lassidão a envolvê-lo, um desejo enorme de dormir, e ficar ali naquele oásis maravilhoso, longe do mundo, indiferente a tudo o que o rodeava. Era tempo de descansar. A labuta fora enorme para governar o seu barco e nem sempre compensadora.
Parecia-lhe ouvir à mistura com aquela música maravilhosa e estranha o velho estribilho «mais três picadas, vai d'arrinca, zás, trás».
Depois um grande silêncio e caiu num sono profundo.
Junto às escadas a azáfama da chegada era enorme. Um jovem alto e espadaúdo
empunhando um par de remos exclamou para um outro de menor estatura que o acompanhava:
- David, David, olha como está o avô!?
- O avô adormeceu, disse o que mais velho parecia, enquanto se debruçava meigamente sobre o velho atleta.
Será que não se apercebeu que o seu querido Ginásio conquistou mais um troféu?
Acho que sim, Daniel, Não vês com sorri feliz?
E carregando o velho avô em silêncio, atravessaram a nova praça e caminharam, caminharam... até desaparecerem ao fim da velha avenida.


Manuela Figueiredo Sopas

POBRES POMBAS

Vi-as p'lo chão espanejando
Aqui e além debicando
Para a fome mitigar,
À espera que mão bondosa
Lhe atirasse caridosa
Umas migalhas p`lo ar.

Expostas a todo o tempo
Açoitadas pelo vento
E pela chuva batidas,
Ei-las pelas ruas paradas
Em grupo, quase aninhadas
Perdidas suas guaridas.

Alguns anos se passaram
Desde a data em que moraram
Empoleiradas no ar,
Tinham casas abrigadas
E as moelas saciadas
Pelas gentes do lugar.

Nem crianças balouçando
Nem canteiros perfumando
O meu jardim de outras eras
Nem pares de namorados
Buscam os bancos pedrados
Entre sonhos e quimeras.

Pobres pombas despojadas
Das casinhas nas ramadas
Bem frondosas do jardim,
Onde hoje só para olhar
Há ervas a germinar
E velhos... esperando o fim

Manuela Figueiredo Sopas

29/2/2008

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

TRISTEZA

Nem um murmúrio no ar
Na solidão de meu lar
Onde só meus passos escuto,
Nem saltitar de criança
Nem o roçar duma trança
Onde sempre paira o luto

Nas paredes alinhados
Há quadros já degradados
Que ninguém ousa fitar,
São cheios de romantismo
Mas não me salvam do abismo
Que se alojou no meu lar.

Num caminhar apressado
Caminho até ao mercado
Passando pelo jardim
E ao longe, p'ra recordar
Avisto a praia e o mar
Tão perto, e longe de mim....

Regresso em passo cansado
Sinto a Djali a meu lado
Madeiro de peso enorme,
Num lugar longe do meu
Coberta por terra e céu
Agora p'ra sempre dorme.

Mas porquê, Senhor, nos deste
O que a sofrer Tu perdeste
Neste mundo conturbado,
Porque nos deste o nascer
Se teremos de morrer
Sem sequer termos pecado?

Manuela Figueiredo Sopas

2/6/2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Pecado

Naquela já longínqua manhã o sono venceu-me, pois deitara-me tarde na noite anterior, pois como fora domingo tínhamos representado mais uma vez para os nossos pais e avô, pois na época nem rádio nem televisão ainda faziam parte de nossas vidas, pois esses eventos vieram muito mais tarde.
Acordei sobressaltada já o sol despontara, com o barulho de minha irmã que me chamava abespinhada:
- Despacha-te, dorminhoca, senão não chegaremos a tempo à escola.
Apressadamente, ainda estremunhada, saltei da cama, lavei a cara e alisei os cabelos bastante emaranhados pelas voltas e reviravoltas que dera durante a noite, devido aos sonhos agitados e confusos que sempre agitavam minha mente.
Depois de engolido à pressa o pequeno almoço, o café com leite e a fatia de pão escuro barrada de manteiga, saca grosseira de linhagem com uma grande flor garrida estampada já um tanto desbotada pelas lavagens constantes a que era submetida e onde deixara de véspera o livro de leitura, o velho João de Deus que ainda hoje conservo, único e comum a todo o ensino pré-escolar, eis-nos a caminho, pois ainda andaríamos perto de meia hora, no nosso passo miudinho, até chegarmos ao nosso reduto, a escola do Gás, como era chamada. Devido a ficar situada perto das antigas instalações onde outrora funcionara a fábrica de Gás que abastecia toda a cidade.
A manhã estava fria e comecei a sentir frio e a sensação de que algo me esquecera de vestir por baixo da saia de chita florida, um tanto imprópria para a quadra outonal que se aproximava.
Curiosa levantei a saia, e qual não foi o meu espanto e aflição ao ver-me nua da cintura para baixo.
Alarmada com tamanha descoberta, confessei a minha irmã::
- Nanda, esqueci-me de vestir cuecas. Como posso agora ir à escola assim, e enfrentar toda a sala de aula, meninas e rapazes?
Não seria melhor voltarmos para casa?
- Palerma, ripostou a minha irmã, dois anos mais velha do que eu, mas com uma maturidade e esperteza muito mais desenvolvida
- Calas-te, e nada dizes, pois ninguém descobrirá.
Mas a noção de pecado incutida dia a dia pela professora, solteira, já em idade madura, um poço de pureza na sua religiosidade, minou-me a cabeça e a tentação de tudo contar logo que chegasse não me saía do pensamento, temente da ira do Senhor.
Se bem o pensei melhor o fiz. Antes que a aula principiasse cabisbaixa e pé-ante-pé, aí vou eu até à secretária e confessei titubeante o grande pecado cometido: não
vestira cuecas.!
A mestra olhou-me com ar reprovador e disse:
- Não voltes a fazer isso minha filha. Vai-te sentar ao cantinho da sala, no estrado de acesso ao quadro com as pernas muito juntinhas, e hoje estás dispensada das lições.
Toda a classe, em risos abafados, fixou os olhos em mim, muito corada, envergonhada com tão profana confissão.
De regresso a casa o que fizera foi alvo das censuras de minha irmã, que tanto me recomendara o silêncio.
Ainda parecia ouvir as gargalhadas de meus colegas, e nem consegui espreitar nos poisios as osgas e gafanhotos espreitar nas suas locas o pouco sol já em declínio, saltitando assustadas quando ouviam os nossos pequenos passos, para depressa se esconderem no seu habitat para se protegerem destes pequenos gigantes que dia a dia invadiam o seu mundo animal.
Muitos anos passaram, e mais tarde, já na adolescência também exerci o curso de Regente escolar, ocupando também uma pequena secretária, o mesmo lugar da D. Conceição, religiosa em exagero. Que um dia tanto condenara o meu irreflectido e infantil esquecimento tão normal numa criança de cinco anos apenas!
Naquela escola à beira-mar, em zona piscatória cercada dum areal imenso, e frequentada por crianças bastante carenciadas, perdi-me nas brumas da saudade e procurei entre todas aquelas crianças que me olhavam curiosas, desinibidas, e até um tanto atrevidas, aquela menina de olhos negros e meigos que ousara um dia enfrentar toda uma classe para confessar o que julgava ser um grande pecado, pecado esse incutido pela rigidez da época e aliviar assim o peso da sua consciência infantil.
Mas não a encontrei. Fora única e perdera-se há muito e perdera-se há muito na estrada sinuosa da vida...



Manuela Figueiredo Sopas

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Eu fui um dia princesa


Eu fui um dia princesa
Não de contos de encantar,
Fui princesa num castelo
Fascinada pelo belo
Do senhor que foi meu par
Eu fui um dia princesa
Num tempo há muito perdido,
Coroa de flores a brilhar
Sobre o véu a esvoaçar
E era branco o meu vestido

Eu fui um dia princesa
Sem ouros nem pedras finas,
E hoje p'ra minha dor
Sou só serva dum senhor
No meu palácio em ruínas

E o vestido, que era branco
Há muito perdeu a cor,
Da coroa de meus cabelos
Não me resta uma só flor,
E os contos da princesinha
Que não eram de encantar
Em crista de onda marinha
Foram tragados p'lo mar
Eu fui um dia princesa
E os contos... são de chorar!

Manuela Figueiredo Sopas
1/9/1998