A notícia correra célere naquela pequena cidade provinciana. O velho africano era pessoa considerada e de fino trato, amigo do seu amigo.
Por tal motivo, naquela rua e por toda a zona ribeirinha da cidade, o triste acontecimento fora notícia, e todas as pessoas comentavam o sucedido.
Só o velho António ignorava a morte do velho amigo. No dia anterior deitara-se cedo. Os seus noventa e dois anos já não lhe permitiam grandes noitadas, e este frio intenso do mês de Dezembro enregelava-lhe as pernas trôpegas que já mal o deixavam andar.
Já a manhã ia alta quando recebera a triste nova, atirada de chofre pela vizinha alcoviteira das traseiras que, irrompendo casa dentro, lhe gritara bem alto e sem rodeios, indiferente ao choque que lhe iria causar:
- Morreu o seu parceiro, senhor António!
Acabaram-se as jogatinas! Coitado, era tão bom homem...Todos seguimos uns atrás dos outros...É assim a vida. Já pagou e nós ainda devemos...
E continuou porta fora com a lengalenga normal nestas ocasiões.
O pobre ancião já nem a ouvira.
Ficara impávido, o olhar vago e fixo a tentar compreender o que acontecera. Sim, porque a sua mente senil e cansada já não conseguia compreender muito bem, distinguir entre o sonho e a realidade.
Quanto tempo assim esteve não o saberia dizer. Cambaleante, como um autómato, procurou a velha bengala a que se apoiava, e indiferente às réplicas da sua velhota, ele aí vai rua abaixo.
A aragem era cortante. Esta quadra de Natal era pródiga em frio e chuva, que inclemente lhe corria pelas faces enrugadas, vincadas pelos muitos anos e pelas asperezas da vida nem sempre ridente.
Arquejante chegou ao seu destino e um a um foi subindo os degraus que o levavam ao último andar.
Quando exausto parou no patamar, os seus olhos cansados ainda puderam vislumbrar uma mesa coberta por um pano escuro, e sobre ela muitos cartões.
Um burburinho desusado percorria toda a casa, ouviam-se sons abafados de choro.
Indiferente caminhou...caminhou...
Notou que alguns olhares se fixavam em si compadecidos, algumas mãos se lhe estendiam, que os familiares o abraçavam.
Mas continuou, procurando sempre, olhar ansioso.
Lá estava a velha mesa com cadeiras em volta, o aparador, e sobre este o baralho das cartas...Gente, muita gente estranha a olhá-lo...a olhá-lo...
Mais além, ao fundo, um esquife, velas acesas, e flores, muitas flores, e gente, sempre gente
Apercebeu-se de que alguém lhe cedia uma cadeira. Trémulo e hesitante sentou-se
Uma luz parece ter então rompido as trevas do seu pensamento e começa a
ver claro, e a aperceber-se da realidade.
O seu amigo jazia ali imóvel e marmóreo. Hoje chegara atrasado, e «ELA» a traidora, adiantara-se e jogara com ele a última cartada, da qual como sempre saíra vencedora.
Acabaram-se as tardes bem passadas, o desfilar de recordações
Quem ligaria agora a um pobre velho já com os pés virados para a cova?
Duas lágrimas furtivas rolaram-lhe pelas faces cavadas, outras tantas se lhe seguiram.
Durante muito tempo ele ali esteve curvado sobre o amigo, ora perdido em seus pensamentos, ora balbuciando orações.
Depois, vacilante e mais curvado que nunca, desceu lentamente os degraus, e sempre arrastando os pés, indiferente às baladas de Natal e às luzes feéricas da rua,
perdeu-se nas sombras da noite
Manuela Figueiredo Sopas
1971
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário