Aquela tarde de Agosto estava tórrida, mesmo com o sol já em declínio. Procurei então a sombra duma velha rua depois de descer pelas ruas estreitas da velha cidade, tão estreitas que as casas quase se tocam, e os moradores quase se abraçam.
Numa pequena loja de bairro, no largo fronteiro à igreja, algo me chamou a atenção.
Abeirei-me da montra e quedei a olhar um vestidinho de criança, em tons de branco, azul e verde, numa mistura de nuvens, céu e mar.
Veio-me então à memória o vestidinho airoso e simples da minha lua-de-mel, há quantos anos, Deus meu!
Comprara-o em Coimbra, numa daquelas vielas típicas tão procuradas pelos turistas
pela sua antiguidade e tradição.
Muito degradadas, com a calçada desnivelada e gasta, estes padrões coimbrões tocam a nossa sensibilidade, não só por recuarmos no tempo, mas ainda pela beleza das suas trapeiras, onde junto às janelas desventradas as flores germinam em vasinhos de barro, ou em qualquer outro recipiente improvisado, enquanto a roupa branquinha esvoaça quando tocada pela brisa.
Nos anos cinquenta a vida era dura para a classe operária de que eu fazia parte. Por esse motivo e a conselho duma colega de trabalho, eu busquei aquele comércio ilegal, naquelas águas -furtadas onde tudo se vendia a preços mais acessíveis às nossas
magras bolsas.
Subi a medo a escada escura, onde os degraus carcomidos pelo caruncho, mostravam na curvatura central o desgaste de muitos anos.
Lá no alto, no pequeno sótão daquele quarto andar escuro e bafiento, havia um pequeno mundo comercial.
Em prateleiras improvisadas havia de tudo um pouco caixas de botões, elásticos, rendas e «lingerie feminina» um tanto ousada para a época, onde os nossos olhos se quedavam encantados. A um canto, montes de tecidos amontoados, meio desdobrados,
deixando à vista do cliente a mercadoria.
Aquele pedaço de tecido de popeline estendido no sobrado escuro era um encantamento, lindo nos seus tons de mar de céu, de espuma.
Não regateei. Como era hábito na época.
Com o embrulho bem aconchegado ao peito, não fosse eu de despistada que era perdê-lo, viajei no tempo até casa, num encantamento sem par.
Com muito amor eu mesma o confeccionei. De corpo muito ajustado donde sobressaíam os meus pequeninos seios e um decote em forma de barco, muito em voga nos figurinos, deixava a descoberto uns ombros magros e pálidos e alongava o meu pescoço esguio.
Com a saia rodada a envolver a minha cintura fina, dentro dele eu mais parecia uma
bailarina saída duma caixa de música que vira há dias numa montra de bazar, que rodava, rodava, ao som duma música linda.
Tentei dentro da minha timidez ser uma noiva feliz ao passear-me pelos jardins das
Caldas e pelas velhas e típicas ruas do Porto onde fui em lua-de-mel.
De quando em quando a minha figurinha airosa dentro dum vestido de popelina barata reflectia-se nos vidros das montras e eu sentia-me como uma estrela a passear-se na terra.
Um par de namorados passa agora junto a mim, e olham embevecidos um vestido de noiva, e baixinho fazem projectos à mistura com beijos...
Depois partem como tinham chegado, muito unidos segredando, e eu vou com eles
pela rua agora mais fresca onde as sombras do entardecer já se reflectem nas pedras da calçada.
Já em casa refugio-me na minha sala de trabalho, meu quarto e meu mundo de mulher mal amada, a quem o destino tudo roubou, o amor, o pouco dinheiro, a saúde e a alegria de viver.
Estendo-me sobre o velho sofá onde há anos durmo numa solidão confrangedora, sem um afago ou palavras de carinho que possam minorar a dor deste câncer que quer vencer-me.
Tento reter as lágrimas que teimosamente caiem de meus cansados olhos e deslizam lentamente pelo meu rosto envelhecido.
Sobre a estante, a velha grafonola é uma tentação para minha alma triste. Agarro à toa um velho disco já arranhado e gasto.
Por ironia do destino era o muito conhecido «TANGO AZUL».
Olhando o anoitecer, eu tento recordar a primeira vez que o ouvi, na praia, entre carícias e beijos, à mistura com o marulhar do mar e o bater das ondas nas rochas escuras e carcomidas.
As lágrimas que a custo quero reter, são agora um caudal a deslizar pelas minhas faces cansadas e envelhecidas.
A noite inunda agora este meu pequeno mundo onde há em tudo um pouco de minha vida.
Fotografias aqui e além, telas que pintei nos meus tempos áureos e os poemas de que mais gosto impressos em placas de porcelana pintadas por mim.
Rodeio-me do belo, mas a tristeza vagueia entre estes pequenos nadas, a matéria da vida.
Quero quebrar este encantamento, lavar com todo este meu pranto a vivência dum passado sem amor.
O meu vestido azul...o meu vestido azul...Sonho lindo duma noite quente de verão!
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
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