Do alto da colina verdejante toda a cidade se via, de casario branco alvejando ao longe e beijada pelo Mondego murmurejante que a seus pés corria.
Foi aí, numa pequena casa de branco caiada com uma pomba de barro a esvoaçar sobre o telhado que eu nasci, em noite quente de Agosto.
Era longo e escalavrado o percurso que nos levava à estrada mais próxima que nos levaria à cidade ribeirinha.
O mar distava cerca de dois quilómetros da citada colina, e para usufruirmos dos banhos estivais tão recomendados pelos médicos, o pai, pela madrugada, antes de iniciar o trabalho na oficina de carpintaria, levava-nos até à praia.
De bicicleta à mão, que nós, eu e minha irmã mais velha seguíamos a par, lá descíamos a tortuosa azinhaga de pedras enormes e desniveladas, para depois em terra firme subirmos para o único meio de transporte transitável, a bicicleta, que nos levaria até ao longo oásis branco, onde o mar ao longe bramia sem cessar.
Os solavancos do já velho e desconjuntado velocípede magoava-nos o traseiro, mas gostávamos daquele passeio matinal embora pelos alvores da manhã pouca circulação se visse, a não ser carroças ainda puxadas por jericos carregadas de produtos hortícolas para abastecer o mercado
O pai chegava cansado à esplanada sobranceira ao mar. Tinha pedalado o mais depressa que suas pernas conseguiram com sua preciosa carga não fosse chegar fora de horas ao seu trabalho diário.
Quando o cheiro a maresia próxima penetrava nas nossas narinas, o medo instalava-se em nossos frágeis corpitos e a barriga doía.
Depois, já na praia, de camisita que a aragem matinal ajustava ao corpo, lá seguíamos tiritantes pela mão do «Euclides», o banheiro, enfrentar aquele gigante de barbas brancas e eriçadas e mergulhar naquele abismo gelado!
O banheiro, de faixa de lã preta ajustada fortemente à cintura, chapéu de oleado amarelo e calças grosseiras de lã preta, prendia-nos a pequena e trémula mão na referida faixa, e lá seguíamos trementes de medo, para em cada onda, empurradas pela mão calosa e gelada do «Euclides», mergulharmos no que para nós parecia um abismo sem fim, e depressa meio sufocadas, esperar por nova onda
Quando o pai de toalha na mão nos esperava no areal sem fim, eu apavorada gritava:
-L´p'ra riba, pai,lá p'ra riba!
Depois, já livres do pesadelo que dia a dia se repetia, seguíamos para a nossa colina lá no alto, o porto seguro onde o «gigante» não chegava, e depressa esquecíamos nos nossos infantis brincadeiras o que dia a dia nos esperava.
Muito tempo já passou. Os costumes são outros, e as crianças de hoje aguardam ansiosas o tempo de praia para brincarem felizes junto do «Gigante», sem que um «Euclides» as force a enfrentá-lo.
Embranqueceram-me os cabelos e as pernas já não são tão ligeiras como outrora.
O areal imenso, o oásis branco como lhe chamei, é hoje muito maior. O. «Gigante», como lhe chamava continua igual, ora temível, ora manso a beijar a eterna noiva, a dourada areia.
E eu, que tanto o temi, amo-o agora no seu batalhar constante, falo com ele, e nele sepulto as muitas mágoas duma vida nem sempre fácil, mais ferinas que todos os mergulhos que temerosa enfrentei na minha nem sempre fácil mas doce meninice.
Mas quando o vejo irado e as ondas se despedaçam contra a penedia junto ao farol ainda pareço ouvir no seu eterno marulhar a minha vozita de criança clamando:
- Lá p'ra riba, pai, lá p'ra riba!
Manuela Figueiredo Sopas
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
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