terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Pecado

Naquela já longínqua manhã o sono venceu-me, pois deitara-me tarde na noite anterior, pois como fora domingo tínhamos representado mais uma vez para os nossos pais e avô, pois na época nem rádio nem televisão ainda faziam parte de nossas vidas, pois esses eventos vieram muito mais tarde.
Acordei sobressaltada já o sol despontara, com o barulho de minha irmã que me chamava abespinhada:
- Despacha-te, dorminhoca, senão não chegaremos a tempo à escola.
Apressadamente, ainda estremunhada, saltei da cama, lavei a cara e alisei os cabelos bastante emaranhados pelas voltas e reviravoltas que dera durante a noite, devido aos sonhos agitados e confusos que sempre agitavam minha mente.
Depois de engolido à pressa o pequeno almoço, o café com leite e a fatia de pão escuro barrada de manteiga, saca grosseira de linhagem com uma grande flor garrida estampada já um tanto desbotada pelas lavagens constantes a que era submetida e onde deixara de véspera o livro de leitura, o velho João de Deus que ainda hoje conservo, único e comum a todo o ensino pré-escolar, eis-nos a caminho, pois ainda andaríamos perto de meia hora, no nosso passo miudinho, até chegarmos ao nosso reduto, a escola do Gás, como era chamada. Devido a ficar situada perto das antigas instalações onde outrora funcionara a fábrica de Gás que abastecia toda a cidade.
A manhã estava fria e comecei a sentir frio e a sensação de que algo me esquecera de vestir por baixo da saia de chita florida, um tanto imprópria para a quadra outonal que se aproximava.
Curiosa levantei a saia, e qual não foi o meu espanto e aflição ao ver-me nua da cintura para baixo.
Alarmada com tamanha descoberta, confessei a minha irmã::
- Nanda, esqueci-me de vestir cuecas. Como posso agora ir à escola assim, e enfrentar toda a sala de aula, meninas e rapazes?
Não seria melhor voltarmos para casa?
- Palerma, ripostou a minha irmã, dois anos mais velha do que eu, mas com uma maturidade e esperteza muito mais desenvolvida
- Calas-te, e nada dizes, pois ninguém descobrirá.
Mas a noção de pecado incutida dia a dia pela professora, solteira, já em idade madura, um poço de pureza na sua religiosidade, minou-me a cabeça e a tentação de tudo contar logo que chegasse não me saía do pensamento, temente da ira do Senhor.
Se bem o pensei melhor o fiz. Antes que a aula principiasse cabisbaixa e pé-ante-pé, aí vou eu até à secretária e confessei titubeante o grande pecado cometido: não
vestira cuecas.!
A mestra olhou-me com ar reprovador e disse:
- Não voltes a fazer isso minha filha. Vai-te sentar ao cantinho da sala, no estrado de acesso ao quadro com as pernas muito juntinhas, e hoje estás dispensada das lições.
Toda a classe, em risos abafados, fixou os olhos em mim, muito corada, envergonhada com tão profana confissão.
De regresso a casa o que fizera foi alvo das censuras de minha irmã, que tanto me recomendara o silêncio.
Ainda parecia ouvir as gargalhadas de meus colegas, e nem consegui espreitar nos poisios as osgas e gafanhotos espreitar nas suas locas o pouco sol já em declínio, saltitando assustadas quando ouviam os nossos pequenos passos, para depressa se esconderem no seu habitat para se protegerem destes pequenos gigantes que dia a dia invadiam o seu mundo animal.
Muitos anos passaram, e mais tarde, já na adolescência também exerci o curso de Regente escolar, ocupando também uma pequena secretária, o mesmo lugar da D. Conceição, religiosa em exagero. Que um dia tanto condenara o meu irreflectido e infantil esquecimento tão normal numa criança de cinco anos apenas!
Naquela escola à beira-mar, em zona piscatória cercada dum areal imenso, e frequentada por crianças bastante carenciadas, perdi-me nas brumas da saudade e procurei entre todas aquelas crianças que me olhavam curiosas, desinibidas, e até um tanto atrevidas, aquela menina de olhos negros e meigos que ousara um dia enfrentar toda uma classe para confessar o que julgava ser um grande pecado, pecado esse incutido pela rigidez da época e aliviar assim o peso da sua consciência infantil.
Mas não a encontrei. Fora única e perdera-se há muito e perdera-se há muito na estrada sinuosa da vida...



Manuela Figueiredo Sopas

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