quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O MEU VESTIDO AZUL

Aquela tarde de Agosto estava tórrida, mesmo com o sol já em declínio. Procurei então a sombra duma velha rua depois de descer pelas ruas estreitas da velha cidade, tão estreitas que as casas quase se tocam, e os moradores quase se abraçam.
Numa pequena loja de bairro, no largo fronteiro à igreja, algo me chamou a atenção.
Abeirei-me da montra e quedei a olhar um vestidinho de criança, em tons de branco, azul e verde, numa mistura de nuvens, céu e mar.
Veio-me então à memória o vestidinho airoso e simples da minha lua-de-mel, há quantos anos, Deus meu!
Comprara-o em Coimbra, numa daquelas vielas típicas tão procuradas pelos turistas
pela sua antiguidade e tradição.
Muito degradadas, com a calçada desnivelada e gasta, estes padrões coimbrões tocam a nossa sensibilidade, não só por recuarmos no tempo, mas ainda pela beleza das suas trapeiras, onde junto às janelas desventradas as flores germinam em vasinhos de barro, ou em qualquer outro recipiente improvisado, enquanto a roupa branquinha esvoaça quando tocada pela brisa.
Nos anos cinquenta a vida era dura para a classe operária de que eu fazia parte. Por esse motivo e a conselho duma colega de trabalho, eu busquei aquele comércio ilegal, naquelas águas -furtadas onde tudo se vendia a preços mais acessíveis às nossas
magras bolsas.
Subi a medo a escada escura, onde os degraus carcomidos pelo caruncho, mostravam na curvatura central o desgaste de muitos anos.
Lá no alto, no pequeno sótão daquele quarto andar escuro e bafiento, havia um pequeno mundo comercial.
Em prateleiras improvisadas havia de tudo um pouco caixas de botões, elásticos, rendas e «lingerie feminina» um tanto ousada para a época, onde os nossos olhos se quedavam encantados. A um canto, montes de tecidos amontoados, meio desdobrados,
deixando à vista do cliente a mercadoria.
Aquele pedaço de tecido de popeline estendido no sobrado escuro era um encantamento, lindo nos seus tons de mar de céu, de espuma.
Não regateei. Como era hábito na época.
Com o embrulho bem aconchegado ao peito, não fosse eu de despistada que era perdê-lo, viajei no tempo até casa, num encantamento sem par.
Com muito amor eu mesma o confeccionei. De corpo muito ajustado donde sobressaíam os meus pequeninos seios e um decote em forma de barco, muito em voga nos figurinos, deixava a descoberto uns ombros magros e pálidos e alongava o meu pescoço esguio.
Com a saia rodada a envolver a minha cintura fina, dentro dele eu mais parecia uma
bailarina saída duma caixa de música que vira há dias numa montra de bazar, que rodava, rodava, ao som duma música linda.
Tentei dentro da minha timidez ser uma noiva feliz ao passear-me pelos jardins das
Caldas e pelas velhas e típicas ruas do Porto onde fui em lua-de-mel.
De quando em quando a minha figurinha airosa dentro dum vestido de popelina barata reflectia-se nos vidros das montras e eu sentia-me como uma estrela a passear-se na terra.
Um par de namorados passa agora junto a mim, e olham embevecidos um vestido de noiva, e baixinho fazem projectos à mistura com beijos...
Depois partem como tinham chegado, muito unidos segredando, e eu vou com eles
pela rua agora mais fresca onde as sombras do entardecer já se reflectem nas pedras da calçada.
Já em casa refugio-me na minha sala de trabalho, meu quarto e meu mundo de mulher mal amada, a quem o destino tudo roubou, o amor, o pouco dinheiro, a saúde e a alegria de viver.
Estendo-me sobre o velho sofá onde há anos durmo numa solidão confrangedora, sem um afago ou palavras de carinho que possam minorar a dor deste câncer que quer vencer-me.
Tento reter as lágrimas que teimosamente caiem de meus cansados olhos e deslizam lentamente pelo meu rosto envelhecido.
Sobre a estante, a velha grafonola é uma tentação para minha alma triste. Agarro à toa um velho disco já arranhado e gasto.
Por ironia do destino era o muito conhecido «TANGO AZUL».
Olhando o anoitecer, eu tento recordar a primeira vez que o ouvi, na praia, entre carícias e beijos, à mistura com o marulhar do mar e o bater das ondas nas rochas escuras e carcomidas.
As lágrimas que a custo quero reter, são agora um caudal a deslizar pelas minhas faces cansadas e envelhecidas.
A noite inunda agora este meu pequeno mundo onde há em tudo um pouco de minha vida.
Fotografias aqui e além, telas que pintei nos meus tempos áureos e os poemas de que mais gosto impressos em placas de porcelana pintadas por mim.
Rodeio-me do belo, mas a tristeza vagueia entre estes pequenos nadas, a matéria da vida.
Quero quebrar este encantamento, lavar com todo este meu pranto a vivência dum passado sem amor.
O meu vestido azul...o meu vestido azul...Sonho lindo duma noite quente de verão!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

INTERROGAÇÃO

O que vou fazer da vida
Já curta mas bem sofrida
Que me espera até ao fim,
Se o viver que me rodeia
É um castelo de areia
Junto ao mar que vive em mim?

O que fazer da saudade
Que pela noite me invade
Em imagens desfocadas,
De mentiras e traição
Que me roubam a emoção
Do alvor das madrugadas?

O que me resta colher
Nesta meta a percorrer
Em que sigo de mansinho,
Se o pavio da candeia
Apagou-se e não se ateia
E não encontro o caminho?

Manuela Figueiredo Sopas

11/7/2003

sábado, 18 de outubro de 2008

A LEMBRANÇA DAS DATAS

Rompeu a manhã, a névoa desceu
Abraça a cidade agora desperta,
Um melro esvoaça e a cantar alerta
Que um novo dia para nós nasceu.

Balança ao sabor da aragem que passa
A folhagem verde das sebes fronteiras,
Abrem-se janelas, regam-se floreiras
Enquanto o sol espreita p'la cortina baça.

Neste dia triste que a brisa trespassa
Não quero lembrar a data que passa
Que a brisa do tempo jamais ofuscou,

E sobre a paleta caída na mesa
Diluo na tinta a minha tristeza
Para esquecer no belo a triste que sou.

Manuela Figueiredo Sopas

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

PASSEI A VIDA A SONHAR


Eu quis sonhar como outrora
Olhando a árvore da rua
Fronteira à minha sacada,
Enquanto a aragem de Outono
Fazia rodopiar
Algumas folhas caídas
Que teimavam em ficar
Espalhadas na calçada.

E comparei-as comigo
Qual lapa agarrada à vida!
Também sou folha caída
Que o vento arrasta sem dó
Tão sofrida, tão carente
Descrente e desiludida
A sentir-se sempre só
No meio de tanta gente...

Venham sonhos com o vento
Sonhos lindos de menina
Muitas palavras de amor,
Muitos prazeres de momento,
Muitos risos de criança
Muitas mensagens d'esperança
E fé num mundo melhor

Será que me ouves, Senhor?

Manuela Figueiredo Sopas

Set./2000

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A Ultíma Cartada

A notícia correra célere naquela pequena cidade provinciana. O velho africano era pessoa considerada e de fino trato, amigo do seu amigo.
Por tal motivo, naquela rua e por toda a zona ribeirinha da cidade, o triste acontecimento fora notícia, e todas as pessoas comentavam o sucedido.
Só o velho António ignorava a morte do velho amigo. No dia anterior deitara-se cedo. Os seus noventa e dois anos já não lhe permitiam grandes noitadas, e este frio intenso do mês de Dezembro enregelava-lhe as pernas trôpegas que já mal o deixavam andar.
Já a manhã ia alta quando recebera a triste nova, atirada de chofre pela vizinha alcoviteira das traseiras que, irrompendo casa dentro, lhe gritara bem alto e sem rodeios, indiferente ao choque que lhe iria causar:
- Morreu o seu parceiro, senhor António!
Acabaram-se as jogatinas! Coitado, era tão bom homem...Todos seguimos uns atrás dos outros...É assim a vida. Já pagou e nós ainda devemos...
E continuou porta fora com a lengalenga normal nestas ocasiões.
O pobre ancião já nem a ouvira.
Ficara impávido, o olhar vago e fixo a tentar compreender o que acontecera. Sim, porque a sua mente senil e cansada já não conseguia compreender muito bem, distinguir entre o sonho e a realidade.
Quanto tempo assim esteve não o saberia dizer. Cambaleante, como um autómato, procurou a velha bengala a que se apoiava, e indiferente às réplicas da sua velhota, ele aí vai rua abaixo.
A aragem era cortante. Esta quadra de Natal era pródiga em frio e chuva, que inclemente lhe corria pelas faces enrugadas, vincadas pelos muitos anos e pelas asperezas da vida nem sempre ridente.
Arquejante chegou ao seu destino e um a um foi subindo os degraus que o levavam ao último andar.
Quando exausto parou no patamar, os seus olhos cansados ainda puderam vislumbrar uma mesa coberta por um pano escuro, e sobre ela muitos cartões.
Um burburinho desusado percorria toda a casa, ouviam-se sons abafados de choro.
Indiferente caminhou...caminhou...
Notou que alguns olhares se fixavam em si compadecidos, algumas mãos se lhe estendiam, que os familiares o abraçavam.
Mas continuou, procurando sempre, olhar ansioso.
Lá estava a velha mesa com cadeiras em volta, o aparador, e sobre este o baralho das cartas...Gente, muita gente estranha a olhá-lo...a olhá-lo...
Mais além, ao fundo, um esquife, velas acesas, e flores, muitas flores, e gente, sempre gente
Apercebeu-se de que alguém lhe cedia uma cadeira. Trémulo e hesitante sentou-se
Uma luz parece ter então rompido as trevas do seu pensamento e começa a
ver claro, e a aperceber-se da realidade.
O seu amigo jazia ali imóvel e marmóreo. Hoje chegara atrasado, e «ELA» a traidora, adiantara-se e jogara com ele a última cartada, da qual como sempre saíra vencedora.
Acabaram-se as tardes bem passadas, o desfilar de recordações
Quem ligaria agora a um pobre velho já com os pés virados para a cova?
Duas lágrimas furtivas rolaram-lhe pelas faces cavadas, outras tantas se lhe seguiram.
Durante muito tempo ele ali esteve curvado sobre o amigo, ora perdido em seus pensamentos, ora balbuciando orações.
Depois, vacilante e mais curvado que nunca, desceu lentamente os degraus, e sempre arrastando os pés, indiferente às baladas de Natal e às luzes feéricas da rua,
perdeu-se nas sombras da noite

Manuela Figueiredo Sopas

1971

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

BARCO SEM NORTE

Podes todas amar que não me importo
Fico feliz se encontrares teu rumo
Eu ficarei no cais envolta em fumo
Num navio fantasma sem ter norte.

Beija-as a todas e ama-as de verdade
Já que o amor por mim nunca existiu
Estrela que não brilhou, nem refulgiu
Na tua ânsia de eterna liberdade.

Se tantos me quiseram porquê tu,
Viste meu corpo e alma sempre a nu
Na pureza da flor sem dó colhida

Porquê caminho assim, barco sem norte
Abandonada às marés da sorte
Sem encontrar a «terra prometida»

Manuela Figueiredo Sopas

2002

sábado, 11 de outubro de 2008

OS MEUS PASSOS

No meu passo arrastado quando saio
Palmilho as ruas como poeta errante,
Olhando o sol poente e o levante
De côr cinzenta neste fim de Maio.

Andorinhas no céu a pipilar
Ensaiam pelos ares novo bailado,
E sigo-as de olhar maravilhado
Porque não tenho asas p'ra voar

Dia após dia são estes os meus passos
Sozinha, sem amigos e sem laços
Que me prendam à vida em que vegeto,

E sorrio, sorrio caminhando
Para o fim que se vai aproximando
Duma vida vazia e sem objecto.

Manuela Figueiredo Sopas
Maio/2008