A noite fora agitada. Vira-se rio acima, remando... remando...remando...numa agitação frenética. As imagens sobrepunham-se e o barco, o «Shell de 4» parecia perder-se em denso nevoeiro, enquanto ele, na sua voz forte de baixo, gritava:
- Força, rapazes, a meta aproxima-se! Mais um pequeno esforço e seremos campeões! Mais três picadas, vai d'arrinca, zás, trás!
Acordara muito cedo. Disputava-se hoje um campeonato de remo, e o seu querido Ginásio lá estaria Mondego acima a tentar a vitória, e ele, o antigo timoneiro e ginasista de gema não faltaria à largada, para de pé aplaudir e gritar o seu já conhecido estribilho:
A rua estava serena ladeada de árvores verdejantes, a gozarem agora o esplendor da primavera.
Pequenos rebentos surgiam agora nos esqueléticos ramos, cansados dum longa invernia.
Dobrou a esquina, olhou as horas no relógio da estação, não fosse chegar atrasado.
Em passo um tanto arrastado, pois os seus oitenta e poucos já não lhe permitiam a pedalada de outrora, encontrou-se na velha avenida, na margem do rio, fronteira à sua antiga morada
Quantas recordações, Deus meu...Quão diferente estava agora! O rio afastara-se devido à construção dum cais comercial, construído há já alguns anos.
Já não há bancos na margem, nem se vêem daqui as regatas, nem as lendárias serenatas d'outros tempos, que atraíam milhares de forasteiros, pelas festas de S. João,
o padroeiro da cidade.
Os velhos barcos alinhados à beira-rio desapareceram, e os pares de namorados já não buscam a escuridão da noite para darem asas aos seus anseios amorosos.
Agora beijam-se e abraçam-se em qualquer lugar e a qualquer hora, alheios aos olhares escandalizados e curiosos dos mais retrógrados da gente que passa.
Uma rede alta ofusca por completo a outra margem o cais comercial e os velhos estaleiros. Mas as buganvílias e sardinheiras enleadas trepam enleadas e embriagam-nos com o seu perfume.
Só não conseguiram tapar os montes de madeira que se acumulam dia a dia para a pasta de papel das duas grandes fábricas circunvizinhas do lado de lá da ponte nova que nada têm de atraente
As árvores velhas foram arrancadas à terra-mãe e outras, esguias e menos frondosas, despontam aqui e além.
A sua velha casa, onde vivera muitos anos, lá está, escura e degradada, perdida no tempo.
Outras gentes agora lá habitam, alheios aos fantasmas saudosos que decerto há noite se passeiam pelos longos corredores.
Guindastes gigantescos parecem figuras dantescas a erguer os braços para o céu, como que a pedir protecção contra a destruição do «progresso».
Quanta beleza não tinha o raiar do dia nos barcos a deslizar e as gaivotas atentas no assoreamento do rio, ou mais acima ancoradas nos barcos já apodrecidos dum velho estaleiro, ainda funcional.
Com a chegada dos bacalhoeiros este cais regurgitava de familiares e amigos, saudosos dos lobos-do-mar, ausentes há meses na Terra-Nova.
Era um não mais acabar de beijos e abraços, porque a gente do mar é muito afectuosa, e a distância, o tempo e os perigos que enfrentaram avivam a sua saudade.
A velha Naval também desapareceu, pensou o velho atleta. Agora tem um novo cais à entrada da barra
As escadinhas de madeira por onde carregava os barcos aos ombros depois dos treinos e das corridas foram-se, bem como as pedra um pouco mais abaixo.
Fora junto destas que aprendera a nadar. O velho Neves era mestre exímio, e não havia chumbos, só cachaçadas e pirolitos!
Sente-se agora cansado, pois a idade não perdoa e as suas pernas já não têm a agilidade de outrora.
Atravessa a nova praça e consulta o relógio. Já não verá a largada, mas não importa a chegada é muito mais impressionante
Gritará como outrora o seu forte «Vai d'arrinca» e todos olharão e a sua vaidade crescerá dentro do peito, porque este amor ao Ginásio vai para além túmulo, ele sabe-o bem.
Havia pouca gente a aguardar a chegada, já não há carolas como outrora, murmurou baixinho. Meia dúzia de atletas e outros saudosos como ele completavam a assistência na Praça da Europa.
Sentou-se então nas escadas que levam ao rio, para assim desfrutar a tão ansiada chegada.
Não vê os netos, pouco amantes de desportos, mas sabe que virão, pois preocupam-se muito consigo, receosos de que algo lhe aconteça. Ele é para eles o pai querido que nunca tiveram.
Sente um torpor estranho a invadi-lo, e já nem distingue se é sonho ou realidade este barco que navega rio acima, envolto em denso nevoeiro.
Não consegue ver a beleza das margens que nas manhãs claras de outrora, até ao anoitecer o encantavam quando pausadamente navegava rio acima a timonar o seu «shell de 4», quando treinava. Depois um túnel enorme surgiu ante seus pasmados olhos.
Ao fundo uma luz intensa e maravilhosa como nunca vira, como que a querer mostrar-lhe o caminho, arrastava-o não sabia para onde, numa força centrífuga que o assustava.
Entrou assim num lugar idílico de prados verdejantes e lagos translúcidos. Nas
margens muita gente parecia aguardá-lo, amigos que já tinham partido há muito e que agora corriam para ele de braços abertos: o Zé Armando, o nauta, o velho Reis, o Quim, o Galeota, o Jordão...e tantos outros amigos da sua juventude que há muito haviam partido.
Sentia-se invadido por uma música melodiosa, diferente, celestial, a que não conseguia fugir.
Mais além, junto a um campo de flores que pareciam brotar espontâneas por todo o vale, uma figurinha gaiata, lencito a esvoaçar a segurar-lhe os cabelos negros, apática e distante...
Não corria para ele. Continuava só, como sempre andara. Estendeu-lhe os braços e chamou, chamou...
Havia tanto a dizer-lhe que nunca lhe dissera!....Mas a sua perdeu-se no vácuo e só ele a ouviu.
A figurinha diáfana foi-se afastando pouco a pouco, e juntou-se a outro grupo, sempre sorrindo, naquele sorrir enigmático e triste que sempre lhe conhecera. Era tarde demais para recuperar o perdido. Só lhe restava regressar só, embora lhe custasse a abandonar este paraíso e os amigos de sempre.
Não encontrou o barco e o túnel também desaparecera.
Só os amigos continuavam a rodeá-lo e outros mais se juntaram.
Sentiu então uma enorme lassidão a envolvê-lo, um desejo enorme de dormir, e ficar ali naquele oásis maravilhoso, longe do mundo, indiferente a tudo o que o rodeava. Era tempo de descansar. A labuta fora enorme para governar o seu barco e nem sempre compensadora.
Parecia-lhe ouvir à mistura com aquela música maravilhosa e estranha o velho estribilho «mais três picadas, vai d'arrinca, zás, trás».
Depois um grande silêncio e caiu num sono profundo.
Junto às escadas a azáfama da chegada era enorme. Um jovem alto e espadaúdo
empunhando um par de remos exclamou para um outro de menor estatura que o acompanhava:
- David, David, olha como está o avô!?
- O avô adormeceu, disse o que mais velho parecia, enquanto se debruçava meigamente sobre o velho atleta.
Será que não se apercebeu que o seu querido Ginásio conquistou mais um troféu?
Acho que sim, Daniel, Não vês com sorri feliz?
E carregando o velho avô em silêncio, atravessaram a nova praça e caminharam, caminharam... até desaparecerem ao fim da velha avenida.
Manuela Figueiredo Sopas